A criminalização da solidariedade

 

Uma das figuras que inspirou o filme “As nadadoras” incorre numa pena de 25 anos de prisão por auxiliar migrantes na costa grega.

[Spoiler alert]. O filme “As nadadoras”, exibido pela Netflix, conta a história de duas refugiadas sírias que, após uma travessia turbulenta num barco de borracha, conseguem chegar finalmente a porto seguro na Alemanha. Nadadoras de competição com uma vida perfeitamente normal, decidem abandonar a Síria quando o conflito rebentou no seu país e os amigos à sua volta começaram a ser mortos. Tal como muitos, decidem arriscar e confiar em que promete uma travessia segura até à costa grega, a troco de muito dinheiro. Aglomerados num barco com excesso de capacidade o filme relata como Sarah Mardini e sua irmã decidem, a dada altura, lançar-se à água e, com ajuda de cordas, nadarem e puxarem o barco cujo motor parara, deixando-os à deriva no mar. Graças à energia e heroísmo das duas irmãs os dezoito ocupantes conseguem chegar sãos e salvos à costa grega onde iniciam um tortuoso percurso por terra até ao centro da Europa, na esperança de chegarem à Alemanha. Ao fim de milhares de quilómetros por terra a atravessar fronteiras e contratarem passadores, graças à boa vontade de equipas alemãs de apoio a migrantes, conseguem chegar a Berlim onde são alojadas num enorme acampamento montado no desativado aeroporto berlinense de Tempelhof. É nesta cidade que conseguem retomar uma certa normalidade e voltar à natação, desporto que praticaram desde sempre e acumularam medalhas. Mas a memória da aflição vivida na dura travessia num barco de borracha frágil não sai da cabeça de Mardini, uma das irmãs, que decide voltar assim às costas gregas para ajudar aqueles que chegam, os que conseguem chegar, exaustos e muitas vezes sem nada, todo o dinheiro que tinham usado para pagar uma viagem insegura e perigosa, e muitos dose seus haveres perdidos para aliviar a carga.

Mas a vida de Mardini voltaria a sofrer um novo revés. Depois de um longo período a prestar apoio num campo de refugiados é presa com 22 pessoas mais, passando 100 dias na prisão. E eis que após uma série de adiamentos terá lugar agora o julgamento de Mardini, acusada pelas autoridades gregas de associação criminosa, tráfico de seres humanos, espionagem e uso ilegal de radiofrequências e cuja pena pode ir até 25 anos de prisão. As reações não se fizerem esperar, do Parlamento Europeu à Human Rights Watch, perante aquilo que muitos classificam como uma criminalização da solidariedade, com a Amnistia Internacional a afirmar que este julgamento mais não é do que uma forma de desencorajar a assistência humanitária aos refugiados que dão à costa do país. A comprovar-se a intenção do governo grego de condenar Mardini, que aguarda julgamento em liberdade após ter saído da prisão mediante pagamento de uma caução, isto representa um rude golpe para as associações humanitárias que envidam todos os esforços para salvar migrantes nas costas do sul da Europa, gente desesperada, pessoas como nós, que foram apanhadas pela guerra e que fazem literalmente tudo para escapar a uma morte quase certa em muitos casos. Neste, sentido, “As nadadoras” é um filme obrigatório pela forma como retrata a fuga em frente de pessoas que não têm nada a perder.

Carlos Tomé Sousa

A filhó assassina

Há uns anos fui com os meus pais passar o Natal a casa de uns amigos do norte, gente querida e generosa e de mesa farta. Chegámos, cumprimentámo-nos e fomos conduzidos logo para a  mesa. De entrada uma canjinha recheada de carne de todos os tipos, assim para aconchegar. Aquilo não era consomé, era para consumir qualquer um. Em seguida chegou o bacalhau, uma travessa gigante de postas e mais postas, batatas e um tapume enorme de  couves. Ainda não tinha alugado um segundo estômago e já lá vinha um segundo prato, perna de peru do campo, não fosse a fome apertar. Não era opcional, era de consumo obrigatório. As gentes do norte são queridas mas há ali algo de viking na sua ânsia de nos fazerem comer três vitelas seguidas… com batatas. Em seguida veio a sobremesa, não uma nem duas, várias sobremesas de todo o tipo. Já com o segundo estômago cheio, bebi com sofreguidão o digestivo e o café na esperança de encontrar paz gástrica. E eis que surge ameaçador um prato de bojudas filhós, uns aliens gigantes e açucarados que vinham ali com intenção de me aniquilar certamente. Protestei, esbracejei, esperneei mas não havia nada a fazer, em três tempos a amiga do norte conseguira enfiar-me um desses paquidermes açucarados pela goela abaixo. Ia morrendo!! Regressámos a casa e passámos a noite a beber agua das pedras e a tomar sais de fruta. Adormeci exausto e ainda hoje por altura do Natal tenho pesadelos, acordo a meio da noite perseguido por uma filhó gigante.
Nunca mais passámos o Natal com amigos do Norte.

Carlos Tomé Sousa

 

30 anos de Fátima Lopes

O Pavilhão de Exposições do Instituto Superior de Agronomia foi o local escolhido por Fátima Lopes para o desfile comemorativo dos seus 30 anos de carreira. Depois de anos a desfilar em Paris por sua conta, e mais tarde com o apoio do Portugal Fashion, colaboração que levaria esta designer de moda a trocar as passerelles de Lisboa pelas do Porto, Fátima Lopes regressou à capital onde tem apostado nos últimos anos por desfiles individuais em locais distintos e com casa cheia. E no dia 24 de Setembro, repetiu o feito. Num espaço repleto de convidados de várias áreas mostrou as suas propostas, em jeito de celebração, num desfile onde não faltaram as propostas para mulheres ousadas, sem dúvida um marco na sua carreira onde a mulher, e a designer de moda by the way, se querem sensuais e ousadas.

Mas desengane-se quem estava à espera de um desfile de senusualidade/espectáculo. Fátima Lopes pareceu mais interessada em mostrar o que sabe fazer com diferentes materiais. Foram cerca de 80 as propostas apresentadas, com particular destaque para as botas altas de cabedal com correias acima do joelho e os vestidos de noite onde o negro predominou. Vermelho, branco e preto foram as cores principais nas propostas para ambos os sexos. Fátima Lopes sempre desenhou para homem, mas as propostas masculinas surgiram aqui em grande número, numa coleção marcada por camisolas trabalhadas e ainda pela ganga com pequenos apontamentos para ele e para ela e onde não faltou também o vermelho e o branco.

Nesta celebração de 30 anos de carreira Fátima Lopes surgiu assim mais sóbria e, a avaliar pelas reações e comentários, soube agradar a gregos e troianos, provando que não serve só um determinado perfil de consumidor. E desta forma quiçá mais discreta, com propostas mais amplas mostrou que está aí para muitas curvas, trilhando o seu próprio caminho “sem copiar ninguém” como gosta de salientar.

Carlos Tomé Sousa