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O país dos falsos ricos

Lisboa é atualmente uma das cidades mais caras da Europa, num dos países com os ordenados mais baixos do Velho Continente. Mas desengane-se quem acha que vem aí uma revolta da população. Em terra de tesos quem tem um imóvel é rei e mais de metade da população está do lado do problema e da solução.

Alugar um apartamento em qualquer cidade portuguesa de grande ou média dimensão é cada vez mais difícil e viver no centro das grandes cidade é cada vez mais um sonho distante, um privilégio para muito poucos. O problema não é novo, mas ganhou nova dimensão com o crescimento repentino da cidade e o apetite pela mesma por parte de gente que até ao final do milénio se orgulhava de não pôr os pés no centro da velha caraça decadente que era a Lisboa antiga, poiso de boémios, classes populares e gente pouco recomendável. O cidadão médio, cidadão europeu por direito da grande comunidade económica europeia, contornava o centro e adquiria casa própria nos novos bairros na fronteira entre os limites da cidade e o subúrbio, ou nos novos bairros na grande Lisboa. O sonho de casa nova prevalecia e o crédito à habitação estava aí para alimentar o sonho. Arrendar casa estava fora dos planos do grosso da população que ascendia assim ao patamar de proprietário graças às inúmeras modalidades de crédito em condições vantajosas.

E enquanto zonas da capital renasciam, o centro morria devagar, com imóveis a precisarem urgentemente de reabilitação. E como se não bastasse o Chiado seria vítima de um dos maiores incêndios na capital no final da década de 80. Seria preciso quase uma década para recuperar essa zona da cidade consumida pelas chamas. Mais de uma década depois, o Chiado renascia com novas valências comerciais, ganhava nova vida e novo interesse, tornando-se de novo num must na cidade. Enquanto isso, no outro extremo da cidade a Expo98 dava nova vida à cidade, atraindo milhares durante seis meses, chamando a atenção para a cidade, um modelo de organização e de aproveitamento de uma zona depois do evento que a todos encheu de orgulho. A Expo98 fez tão bem ao ego nacional que devia haver uma de 20 em 20 anos.

Com o orgulho curado e um Chiado renovado, Lisboa parece ter feito as pazes com o centro. Passear no Chiado e na baixa voltou a ser obrigatório. E com os nacionais vieram os turistas em números cada vez maiores fruto de circunstâncias várias, tais como a instabilidade no norte de África, destino de milhares de turistas franceses. Comprar e investir na baixa passou a estar na ordem do dia e a zona de influência foi-se alargando para norte Almirante Reis acima com o Intendente a ser alvo de intervenção para atrair novas gentes para uma área marcada pela prostituição, droga e pobreza. Trinta anos depois o projeto parece ter falhado e do novo colorido urbano desta zona resta apenas uma miragem, com cafés que fizeram a diferença pelo seu modelo de integração com os novos residentes a serem corridos dali. Um largo que é agora um desconsolo.

E com este apetite renovado pelo centro da cidade os senhorios começaram a olhar para os seus imóveis com um novo olhar, ajudados por fatores políticos e sociais. Primeiro veio o aumento das rendas, fruto da liberalização do mercado de arrendamento, com o objetivo de repor algum equilíbrio num mercado de arrendamento marcado por rendas antigas a preços reduzidos, num país de ordenados baixos e reformas irrisórios. Depois veio o turismo e o alojamento local, com tudo o que é imóvel a ser reconvertido em apartamentos para turistas, empurrando mais gente para fora do centro da cidade, a começar pelos populares e pobrezinhos desdentados que decoravam esses destinos turísticos e que davam lindos quadros neorealistas para os turistas.

E à medida que o país ia ficando cada vez mais na moda, aos turistas juntaram-se centenas, milhares de pessoas que descobriram de repente as maravilhas de viver em cidades como Lisboa, desde reformados europeus com benefícios fiscais a americanos desafogados e brasileiros endinheirados em busca de sossego e segurança, passando por estudantes que agora frequentam universidades portuguesas com nomes e cursos em estrangeiro.

No espaço de poucas décadas, a cidade que engordara para os lados em bairros feitos a pensar numa classe média nacional e aspiracional, que perdera habitantes para essas novas zonas munidas de circulares internas e externas, centros comerciais e lugares de estacionamento, muda de repente e torna-se cobiçada. Revolvem-lhe as entranhas, pintam-lhe a cara e de matrona decadente e sem dentes passa a senhora fina de posses, orgulhosa do seu património e do legado histórico. Bairros inteiros são reconvertidos, janelas duplas e amplas, muito gesso e contraplacado que não há tempo, mobílias Ikea e andorinhas às dúzias nas paredes, estabelecimentos com nomes cativantes em inglês e eis a nova cidade pronta a receber estrangeiros remediados e endinheirados.

Com o centro da cidade renovado e inacessível aos bolsos nacionais, novas zonas da cidade ganharam de repente proeminência, o que tem o seu quê de interessante. Morar em Campolide, Cacilhas e Benfica passou a ser cool, deambular por Alvalade continua a ser bem, a Ajuda dizem estar também na moda e enquanto não chegam mais startups e unicórnios morar no Beato ainda é relativamente barato, mesmo ao lado de Chelas, que um dia perderá o estigma e ascenderá também ao overground.

Mas esta mobilidade e rotatividade tem o seu preço e o todo da cidade vai ficando de repente cada vez mais inacessível para o bolso normal dos portugueses que ainda resistem e não se mudaram para a terra com a desculpa que preferem o sossego do campo.

Alugar casa em Lisboa é um pesadelo, onde quer que seja e não parece haver pacote habitação ou legislação que salve o problema. O governo socialista, acusado de ter pactuado com esta situação, vem agora propor medidas para devolver algum acesso à habitação. Mas aquilo que seria normal e que é praticado em cidades civilizadas como Berlim foi criticado por todos, da esquerda à direita. A questão vai muito além da ideologia e tem muito que ver com a nova dimensão que a propriedade privada ganhou em Portugal. Mais de 70% da população é proprietária do imóvel onde reside, fruto da democratização e vantagens no acesso ao crédito imobiliário. Gente que é agora dona do seu pedaço, a materialização do sonho, um T-2 novinho, um carro de boa cilindrada e os filhos na faculdade.

Visto assim é um país que dá gosto, civilizado. Mas olhando de perto o que temos é um exército de falsos ricos, endividados até mais não e sem grande rendimento disponível após o pagamento das prestações Quanto aos restantes 30% é gente desgovernada que não soube investir ou gente pobre que não quer trabalhar, azar. E são esses 30% que estão olho do furacão, no olho da rua, gente obrigada a andar de mala às costas. Num país de proprietários, quem tem imóvel é rei e com a vaca a engordar cada vez mais não é de esperar uma redução de rendas ou reafetação de imóveis para arrendamento a preços acessíveis. Em casa onde não há pão todos gritam e todos têm razão.

Carlos Tomé Sousa