António Sérgio foi o encarregado de educação de uma imensa minoria de gente que, graças a ele, tem o melhor gosto musical do mundo.
Estão 22 graus ainda e as escadarias de mármore da igreja vão libertando devagar o calor acumulado durante o dia de Sol intenso. Estamos em pleno Verão alentejano, em plenas férias e a noite convida a ficar ali deitado sobre a pedra quente a olhar as estrelas que lá em cima desenham constelações. Do gravador estéreo de cassetes sintonizado numa estação de rádio sai uma canção poderosíssima que se espalha pelo ar. “Love my way” de Psychedelic Furs, anuncia uma voz grave e forte. Nem tive tempo de carregar no botão de gravar. Fiquei ali minutos a digerir aquilo, era muita informação, era muito bom. Não tinha onde escrever, mas também não era preciso. O nome e a banda estavam registados graças a ele. Nessa mesma escadaria, à mesma hora tardia, no largo onde estacionava uma vez por mês a carrinha dos livros da Gulbenkian descobrira meses antes “The Book I Read” dos Talking Heads. “I’m embarassed to admit it hit the soft spot in my heart”, dizia a canção. ‘Na na na na na’, ia eu cantando pelas ruas. Aquilo era mesmo bonito! António Sérgio era o nome desse homem que há dois anos andava a mexer com as minhas emoções a formar os meus gostos, “hitting the soft spot in my heart”. Por sua causa fui a correr comprar o “Heaven up Here” dos Echo and the Bunnymen”, aguardei impaciente a saída de “Juju” de Siouxsie and the Banshees”. Graças a ele comprei em 1980 numa loja para os lados da Praça da República em Coimbra “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” de David Bowie, esse Deus supremo que me marcou a vida e os gostos e tudo. No dia em que me safei da tropa por excedente de pessoal, António Sérgio deve ter sabido e passou “Troops of tomorrow” dos Exploited. O homem parece que adivinhava os meus estados de alma e as suas músicas andavam sempre comigo no Sony walkman recentemente inventado. Estudava na altura em Coimbra e atravessava meio país desde o sul profundo com a sua voz gravada a anunciar canções que me marcavam os dias e as noites. O homem era de uma sensibilidade incrível e, sempre que viajava, lá ia para as lojas de discos com uma lista de compras que ele me ajudava a preparar. Desde os 16 anos e a cada ano que passava aparecia na loja Saturn de Colónia ou no MusicLand de Bona com mais um pedido. “’God’ dos Rip Rig and Panic? Gostas disto?”, perguntava-me o gajo do Saturn, surpreendido, enquanto procurava o disco na secção dos discos mais obscuros”. “‘Westworld’ dos Theatre of Hate? Nem sei o que é mas acho que tenho ali. Onde é que raio vais descobrir estas bandas”, perguntava-me Günther, o freak do MusicLand. E eu lá lhe explicava que havia no meu país um locutor de rádio que passava estas músicas e que havia uma imensa minoria de gente com gostos semelhantes graças a ele. E voltava a Portugal com um molho de discos tudo por causa dele. Esse mesmo homem que, em 1980 e em 1981, me deu a conhecer dois discos que mudaram a vida: “Remain in Light” dos Talking Heads e “My Life in the Bush of Ghosts” de Brian Eno e David Byrne. Lá estava ele a brincar com os meus sentimentos. Aquilo era eu em dois discos. O homem sabia ler-me a alma, não havia outra explicação. A cada emissão a minha lista de álbuns ia crescendo, Simple Minds, Shriekback, The The, Young Marble Giants, Comsat Angels, Romeo Void, Triffids, Gary Numan, Cabaret Voltaire, This Mortal Coil, tudo com o selo António Sérgio, o homem que um dia quase me fez desmaiar quando passou “Song to the Siren” pelos This Mortal Coil. Aquilo era lindo e grandioso. Um dia conheci-o num bar chamado Ritz Club em Lisboa. Falámos já não sei de quê, de música certamente. Acho que nem me apresentei. Tinha quase a certeza que ele já me conhecia há muito. Só podia. E eis que há sete anos nos deixou de repente. O seu corpo jazia ali naquela capela da Basílica da Estrela e no ar ouviam-se temas que passara em tantos programas desde o Rotação ao Rolls Rock, Som da Frente, Grande Delta, Hora do Lobo, Viriato 21. A sensação foi indescritível. Uma sensação de arrepio correu-me a espinha, algo avassalador. E com o mais profundo sentimento de gratidão fechei os olhos e fiz, e repito, uma grande e devida vénia a esse pequeno gigante de mármore.
Carlos Tomé Sousa