É inevitável. Sempre que o sol vem assim morno, a aquecer gradualmente surge aquela rua de calçada irregular que desce até ao poço, com vista para a serra, o branco da cal mais vivo do que nunca e a fazer piscar os olhos de violenta claridade. E ali estão elas, duas, três quatro mulheres, de casaco de malha dobrado pela cabeça, a dobar lã, a fazer crochet, malha, a vizinha Nazaré e a comadre Zeza, a Célia e a Maria. Passam assim as tardinhas, por entre conversas de circunstância, regateirices das boas, por entre o barulho dos pássaros e o grito dos putos que depois das três, saídos da escola, invadem as ruas com os seus jogos.
– Olhem que vocês ainda se cortam com essa bodega – diz uma das mães, ao ver passar um grupinho com latas de conserva vazias e um grande baraço. Passam pela oficina improvisada do tio Zé e roubam dois grandes pregos que usa para ferrar machos e mulas e burros e tudo o que for animal a precisar de ferradura. Com uma pedra a servir de martelo fazem um furo nas extremidades de uma lata, depois outra e passam o fio fazendo assim um comboio intercidades com dez carruagens puxado a cordel, desenhando uma enorme via de sentido único na terra seca que cobre o chão, serpenteando azinhaga abaixo até à porta da Sra. Vitalina, uma velhinha solitária que entre costuras se entretém a ver as hordas de putos a brincar naquela azinhaga que é um mundo, entre uma grande estrumeira que recebe o lixo biodegradável, muito antes de se saber o que raio queria isso dizer, e a grande cerca misteriosa de um lavrador abastado.
Poucas pessoas passaram aqueles muros e por trás dos grandes portões da cerca que dão para a rua o ladrar feroz dos cães retira a vontade de descobrir o que se esconde aí. Unicórnios e gnomos não são com certeza que a imaginação não chegou aí ainda, faltam dois anos para poderem ler os Tolkien e afins marcados a vermelho na carrinha Citröen cinzenta que transporta a biblioteca itinerante da Gulbenkian. A cada tentativa de aceder a esses livros o Sr. Artur, mais austero que Sr. Ludgero, diz que não, que ainda não tens 14 anos, esses livros não são para ti, ainda. Um dia serão que o Sr. Ludgero por vezes vem sozinho e, com o seu sorriso aberto e bonacheirão, dentes grandes e cabelo comprido que mais parece um maestro, de vez em quando abre uma exceção.
– Podes levar, mas quando entregares diz que foi a tua tia que requisitou.
E foi assim que a Lídia descobriu pelos livros os unicórnios e gnomos que se escondem na imensa cerca, ameaçadores por trás das grandes paredes que ladeiam a rua. E foi assim que o Zé quase desmaiou a ler o “O último tango em Paris”. No dia que o devolveu ainda vinha tão corado que o Sr. Ludgero, rindo a bandeiras despregados, teve de confessar ao colega Artur que deixara o puto levar o livro, que ele já andava na idade dos calores e das explorações por baixo dos lençóis.
Quem gostava muito da biblioteca itinerante era a menina Olívia, rapariga feita, três anos mais velha do que o Zé e a Lídia e que só encontrara então o amor nos livros que requisitava todos os meses. Romances de todos os tipos, russos, franceses, portugueses, estes últimos uma desgraça, aquilo acabava sempre em miséria, morte ou incesto. Preferia os franceses, os romances, que os outros, os homens, só vira um no casamento da filha do Sr. Ramalho que casara com pompa e circunstância e fatos muito bonitos e até gente de fora e do estrangeiro viera. Passava as tardes ao sol a ler sobretudo romances franceses e a sonhar com o Jacques, assim se chamara o rapaz francês que vira no casamento, homem de meia estatura e cabelo comprido como se usava então e que lhe gabara o vestido. “Três jolie, mademoiselle”. E a cada folha do livro lá aparecia o raio do francês que não lhe saía da cabeça.
Quem andava com a cabeça num verdadeiro rodopio também era o Zé desde que lera o livro. Andava lívido, mal dormido, quase amarelo.
– Parece que viste um lobo – disse-lhe a Lídia um dia, a cabeça povoada de criaturas estranhas que todas as noites acendiam fogueiras atrás dos muros da cerca, tinha a certeza.
– Cala-te, não sejas parva. Volta mas é para os teus monstros – disse em voz alta.
– Monstros não, duendes e seres especiais. Não percebes nada.
Andava assim a cabeça destes três, tudo por causa da literatura. O que a literatura causara só a literatura podia curar. E foi assim que um dia, cruzando o olhar o Zé e a Olívia, três anos mais velha, identificaram no olhar de ambos o fogo que escondiam, que lhes ruborescia as faces e que lhes queimava os dedos ao virar de cada página e quando deram por si estavam no palheiro do Sr. Américo, consumando tudo o que sonharam nos livros, beijos, carícias mais filhos que vieram a seguir. Lídia também encontrou a sua sorte, graças à literatura. Um dia, num assomo de coragem, vestiu a pele de heroína, daquelas que domam dragões e tudo, esgueirou-se pelo portão da cerca que ficara entreaberto e sem medo, olhando de frente os trolls, que afinal não passavam de cães, esbarrou com um duende alto e loiro de calças muito justas e camisola verde. Chamava-se Artur, era neto do proprietário da cerca e da casa grande, beijaram-se e foram felizes para sempre. Hoje vivem na cidade têm dois filhos e um Kindle.